Nasci para
ser pobre e por isso sou empregado. Apesar de possuir algumas habilidades que
poderiam me proporcionar alguns pontos diferenciais em um negócio próprio não
sei me portar como comerciante. Por outro lado isso me permite escolher as
companhias e as amizades, o que não seria possível se eu dependesse do comércio
para viver.
Ontem saí
de casa para ir ao banco, ao supermercado e falar com um amigo. Como todos os
locais eram perto de casa fui a pé. Nós tínhamos um ponto em comum que era
retirar o kit para participar de uma corrida hoje e ele já havia combinado com
uma terceira pessoa para irem até o local e me convidou. Sabe aquela sensação
de não querer aceitar, mas pela circunstância se vê envolvido? Pois é, foi o
que fiz. Eu já havia estado com esse rapaz, de cerca de 35 anos, umas duas ou
três vezes, mas nunca havíamos conversado.
Ao entrar
em seu carro, um ágil fiatizinho 1400 ou 1600, o meu amigo disse, vocês dois
que são engenheiros vão na frente pois podem conversar, e ele prontamente
retrucou, hoje é sábado e eu não converso sobre trabalho. Apenas para
participar eu disse que era dia de descanso. Não havíamos percorrido nem 400m e
ele em uma manobra ousada, mas não tão arriscada, ultrapassou dois carros, e o
meu amigo comentou: você dirige agressivamente e ele respondeu: agressivamente
não, eu sou esperto. Veja: eles estão abaixo da velocidade permitida e em fila,
um passou pelo semáforo e o outro ficou. E continuou a dar lições de trânsito
justamente para mim, que me considero um bom e experiente motorista. Eu
comentei que ele deveria respeitar os ciclistas, e o esperto respondeu: se eles
me respeitarem tudo bem, do contrário eu também não os respeitarei. Se um deles
atravessar o sinal vermelho eu o jogo do outro lado da rua. Comentei que existe
uma outra lei que diz que não é permitido matar e a regra de trânsito diz que o
mais forte deve proteger o mais fraco.
Essa
conversa não iria terminar. Ao sairmos pela avenida São Carlos e entrarmos na
rodovia Washington Luiz na direção da capital há um pequeno aclive no qual
transitava um gol 1000 que sendo conduzido por um motorista, no mínimo,
desatento. O esperto logo tomou a mão da esquerda o que daria a ele a
prioridade na ultrapassagem, mas o motorista do gol, em uma manobra
imprevidente, ainda que sem risco, saiu para a esquerda. Era uma situação perfeitamente
administrável, pois havia distância segura e a diferença de velocidade não era
tão grande, mas o esperto deixou para frear na última hora, enfiou a mão na
buzina e deu repetidos sinais de luz. Não contente, quando o outro retornou
para a faixa da direita, o esperto passou gesticulando, buzinando, xingando e
eu morrendo de vergonha.
Veio então
uma enxurrada de justificativas do tipo, se não sabe dirigir, que não saia de
casa. Se não está preparado, que não pegue a pista. Se fosse um caminhão teria
passado por cima. Se ninguém falou nada para ele alguém tem que ensinar e agora
ele vai aprender. Logo à frente ele teve que reduzir a velocidade e justificou,
aqui eu diminuo porque tem o posto de guarda e tem radar. Não me contive: você
está errado, você deve diminuir a velocidade não por causa do guarda ou do
radar, mas porque é a velocidade que a lei determina. Ele desconversou e
percebi que era o momento de eu me calar. Apenas o respeito ao meu amigo que me
convidou me fez não pedir para descer e voltar a pé para casa, uma situação que
a minha condição física perfeitamente me permite.
Chegamos ao
local, pegamos os kits, voltamos e não comentei mais nada. Apenas me despedi e
agradeci, mas essa é uma companhia que não quero e uma amizade esperta que não
desejo. É melhor continuar sendo pobre.