Sente-se que a estória é longa.
Na sexta-feira conversei com os amigos que iriam pedalar comigo na manhã de sábado e disse que, apesar de todos nós termos compromissos no sábado à tarde e o percurso ser longo, eu só sairia depois das 6:20h pois o dia está clareando tarde. Combinamos de encontrar o Alex às 6:30h próximo ao trevo da Getúlio Vargas com a Washington Luiz, e eu encontraria o Rodrigo às 6:15h na Praça Itália. Para o trajeto preparei um lanche típico de um retirante: 4 fatias de pão de forma untadas com mel, 2 Alfarrobas de banana, 2 pacotinhos de biscoito Club Social integral, 1,5 litros de água com aminoácidos, uns 3 saches de gel de aminoácido e meio litro de água pura.
Às 6:05h eu já estava na praça Itália observando que para alguns que se dirigiam ao trabalho à pé, de bicicleta, moto e certamente de carro, o dia estava apenas começando, mas para outros a noite ainda não havia terminado, como para os jovens que passaram em uma Caravan toda arrebentada, ouvindo em alto volume algo como um rap de baixa qualidade em alto-falante de qualidade pior ainda. O passageiro do banco de trás gritava algo ininteligível e o da frente jogou latas de cerveja pela janela. Teve também o casal que caminhava sempre se tocando, ela uma jovem bonita, com roupa simples mas arrumada, e ele com a camisa aberta, cerveja em uma das mãos e cigarro na outra e com um caminhar balançado como quem quer parecer mais malandro do que é. Sentenciei: não terão um bom futuro. E o mais grave, um rapaz de uns 28 anos, com a minha estatura, mais pardo do que eu, sim, pois minha esposa informou ao IBGE no último Censo que eu sou pardo, um pouco mais magro do que eu e que andava cambaleando. Com aquele porte físico e no estado em que se encontrava não poderia me intimidar. Ao se aproximar perguntou:
O senhor é atleta?
Não, só pedalo um pouco.
O senhor curte.
Eu preciso.
Não, o senhor curte! Com essa roupa só pode curtir. Posso levar um papo reto com o senhor?
Claro.
Então senhor, eu já caí várias vezes, já levantei, puxei cana várias vezes e saí, já trabalhei, é o vício, senhor. O senhor sabe.
Sei.
Faz "treis meis" senhor, é abstinência, senhor.
É, tem que persistir.
É senhor, eu quero trabalhar.
Eu sei, tem que mudar de vida.
Não tem vida senhor.
É, muita gente morre.
Morre como?
Alguém mata.
No meu caso "é os home". Hoje tomei uma cachaça e "tô" precisando. O senhor me arranja 1 real? 50centavos?
Eu não carrego dinheiro, só água na mochila, nem bolso eu tenho.
Tá certo senhor, mas eu vou arranjar.
Se cuide.
Cesar, Cesar! Era o Rodrigo me chamando do outro lado da praça. Fomos embora.
O Alex, que sempre chega adiantado, se atrasou uns 3 minutos. Partimos para Descalvado, num fácil trajeto de cerca de 40km, mas que tem um trecho de descida com muitas pedras em que a velocidade alta aliada à trepidação faz com eu sinta coceira nas pernas e nos braços. Foi uma boa média, em torno de 22km/h e em menos de 2 horas havíamos chegado. Saímos imediatamente para Analândia, mais uns 35km em um percurso bem mais difícil. Chegando lá perguntamos onde havia uma padaria e nos indicaram o calçadão, que até o ano passado não existia e que se trata de uma calçadinha de uma quadra, onde operários montavam um palco metálico para show e que quase tocava a rede elétrica de baixa tensão. Tomei uma espécie de Gatorade e comi 2 fatias de pão com mel, um pacote de biscoito e uma Alfarroba. Descansamos um pouco e viemos embora.
No início a subida é leve, mas o solo é arenoso e fui ficando para trás, ao chegar ao início da subida mais forte encontrei o José, que disse ser de São Carlos e às vezes vai do posto Castelo até aquele ponto umas duas ou três vezes “para compensar o rolê”. Passando pelo morro do Camelo ele acelerou e continuei em meu ritmo lento. Mais acima o Rodrigo e o Alex haviam parado e estavam tirando fotos quando cheguei. Na saída, brincando, o Alex disse que iria alcançar o José, e ambos comentaram que ele é mal educado, pois ao passar nem os cumprimentou. Novamente eles se adiantaram e fui seguindo-os. Quase ao final da subida, com os dois já fora do meu campo de visão, encontro o José meio desequilibrado. Ele precisava de uma chave para apertar o banco da bicicleta que havia se soltado e, por sorte, eu tinha. Ajudei-o e começamos a subir juntos, mas fui deixando-o para trás e após uma curva não mais o via. Voltei. Ele estava fazendo alongamentos.
O que houve?
Não sei, acho que o banco desajustado me fez sentir câimbras.
Você tem água?
Sim.
Quer um gel de aminoácidos?
Se você tiver.
Melhorou?
Sim, vamos empurrar um pouco.
Subimos empurrando até o topo onde o Alex e o Rodrigo nos esperavam e começamos a pedalar novamente. Íamos voltar pela Invernada e o José veio conosco. Numa descida forte cheia de pedras fui com muito cuidado e eles que haviam se distanciado me esperaram em uma curva. Ao me verem foram embora, mas ao chegar lá eu caí, sem gravidade. Definitivamente essa brincadeira de cair não me agrada. Passamos por um trecho com muita areia e chegamos à subida da invernada, que é íngreme, tem cerca de 2km mas é asfaltada. O Rodrigo foi adiante, o Alex parou para comer, eu passei, e o José vinha atrás. No meio da subida não agüentei, pois já tínhamos percorrido uns 95km e resolvi empurrar um pouco, foi quando o Alex me passou. Voltei a pedalar e encontrei os dois que estavam nos esperando. Conversamos e decidimos que eles iriam embora e eu voltaria para ajudar o José.
Retornei por uns 400m e o encontrei parado. Dei a ele uma barra de cereais que o Rodrigo havia deixado e ele comeu. Dei um pacote de biscoito e ele comeu. Dei uma alfarroba e ele também comeu, depois disso tomou quase toda a água da minha garrafa reserva. Começamos empurrar até o topo e ele me contou sobre a sua vida: tem 21 anos, é casado e eles têm um casal de gêmeos de 3 meses, mas ele mora com os pais dele e a esposa com os pais dela. Ele trabalha em uma loja de sucos e ganha R$ 700,00 por mês. Prestou concurso para ser policial e está esperando pelo resultado. O sonho é estudar no Barro Branco.
Voltamos a pedalar para completar os cerca de 15km restantes, e ele se recuperou de tal maneira que até tentou me passar em alguns momentos, mas o meu instinto competitivo não deixou. Chegando à marginal ele poderia subir a Aquidaban e descer a USP que era o caminho mais curto, ou seguir pela marginal virar no Cristo e voltar até a USP, cujo trajeto é mais longo mas a elevação é suave. Foi o que ele preferiu.
Muito obrigado pelo que o senhor fez por mim hoje.
Que isso, se cuide.